Bebo um copo sozinha em homenagem a uma grande companhia. E brindo
levantando o copo, embora apenas na minha imaginação, cheia de vontade de encontrar
ao alto o outro copo que neste momento me faz falta.
Adele e Peixoto conheceram-se num dia banal de trabalho e desde então
muitas peças se foram naturalmente encaixando, num puzzle sem contornos certos.
E assim é que eles gostavam de estar, sem contornos, sem preconceitos, sem
rodeios, sem subterfúgios, sem tabus, sem tretas...
Claramente numa amizade assim, em que se partilha tudo sem qualquer ciência
é inevitável que a cumplicidade entre ambos se expanda. E assim aconteceu.
Nenhum tinha segredos para o outro.
Curioso que até para o companheiro temos algumas reservas, neste caso entre
eles essas defesas caíram por terra, não encontraram raízes... As raízes nem
sempre são boas... Às vezes num relacionamento crescem raízes venenosas, mas
entre eles nada disso aconteceu. Eles não tinham um relacionamento amoroso. E
isso era delicioso.
Adele era uma mulher bonita, usava uma melena castanha solta em cachos
largos e redondos, era alta e magra. Usava vestidos de organza que se enrolavam
nas suas pernas e deixavam transparecer os seus contornos femininos e quando
caminhava vários olhares caminhavam com ela.
O seu percurso de vida e a influência dos seus progenitores
transformaram-na num ser muito determinado e sem grandes medos. Aliás, mesmo
puxando pela cabeça não conseguia lembrar-se dos medos que não tinha. Ela só
queria viver todos os dias, todas as alegrias que pudesse. Como se tivesse
ganho o totoloto das alegrias e por mais que vivesse nunca iria ter tempo para
as gastar todas. Ainda por cima estava num ano bom, pois a própria vida
oferecia-lhe muitos motivos para rir, o que ela agradecia, celebrava e
acumulava. Mas claro que não podia sobreviver apenas desta dieta, também
sentia outras coisas. Coisas que partilhava muito com o seu amigo e companheiro
Peixoto.
Peixoto, por seu lado era também uma alma cheia de vontade de se agarrar
àquilo que queria viver. Muito intenso e ao mesmo tempo tão admiravelmente
tranquilo. Não se arrependia de nada do que fazia e atirava-se cheio de coragem
do alto das suas pernas para o meio da arena, com uma auto-estima tão grande,
que até a fera que o enfrentava pensava duas vezes antes de investir.
Um dia foram os dois dançar. Embriagados pela música, pelo calor de todos
os corpos sem braços que os envolviam, pela penumbra que os guiava um para o
outro, beijaram-se. Beijaram-se de boca aberta e olhos fechados. Beijaram-se
com as mãos escondidas nas costas um do outro. Beijaram-se sem dizer palavras,
sem respirar. Apenas as línguas se trocaram e os lábios disseram silenciosos o
que a música deixou de tocar. Beijaram-se como uma primeira vez, mas sem medos
ou nervosismos.
E enquanto eram empurrados pelos corpos sem braços, o calor tornava-se
incontrolável e almareados pela vontade que crescia perderam a noção do espaço
que depressa abandonaram, sedentos de viver aquele desejo com todos os braços
que tinham e que naquele momento não chegavam. Desamarraram por uma noite todos
os laços que os uniam àquela amizade e durante horas percorreram o
desconhecido, esmagando-se mutuamente. Tentavam a todo o custo esconder todos
os seus membros nos espaços nunca antes sentidos do corpo um do outro. Criaram naquele momento novas peças de um puzzle mais recente, cheio de contornos novos e compuseram-no, nus na vertical, encostados à janela exposta à indiscrição dos outros.
Também aqui descobriram uma cumplicidade até agora ignorada. No corpo um do
outro foram ingratos para com aquela amizade que os unia... Ou assim pensaria
quem não os conhecia, quem não os percebia. Na realidade, quem os invejaria
caso percebesse...
No dia seguinte Peixoto quis vê-la. Dizer-lhe com os olhos que a sua alma
queria vivê-la. Adele no entanto quis ficar sozinha, deixar-se absorver com
honestidade pelo que estava a sentir. E sentiu no corpo um nervoso inquietante.
Tentou perceber porquê. E percebeu o seguinte, aquela amizade estava acima do
momento que segundo ela fora único e ao mesmo tempo irrepetível. Era isso que
ela sentia.
Uma coisa é fazermos amor com um desconhecido ou mal conhecido, outra muito
diferente é fazer amor com alguém que adoramos, respeitamos e por quem temos
uma enorme afeição e amizade.
Peixoto porém, sentia de outra maneira. Na sua qualidade masculina aquele
desejo não se saciava numa só vez e no outro dia ele apareceu e percebia-se que
ao contrário dela, queria repetir. Ficou decepcionado, embora tenha percebido
os motivos de Adele.
Os contornos da amizade mantinham-se inabaláveis. E por isso mesmo Peixoto
tinha o à vontade para lhe dizer que a desejava, que queria voltar a
esconder-se nos cantos fora da amizade. Queria voltar a ser ingrato para com
esta e ao mesmo tempo queria liberdade para gozar este outro sentimento. Peixoto situava-se no meio destas duas polaridades num equilibrio muito confortável. Já Adele ainda não tinha encontrado esse equilíbrio.
Assim notou-se algum constrangimento entre os dois e embora depressa se ultrapassasse com pequenos grandes esclarecimentos, aquele permanecia latente.
Adele, sempre directa disse-lhe que ele estava abatido e ele disse-lhe que
não e insistiu em manifestar-lhe o seu desejo em esconder-se dentro dela. E
perguntou-lhe do que tinha ela medo. E dentro da mesma sinceridade de sempre
ela respondeu: - tenho medo de não me apaixonar...
Ele olhou para ela e riu muito, dizendo-lhe que era disso que ele gostava
nela, aquela sinceridade crua e de confiança. Agora estamos a conversar - dizia
ele a sorrir - agora estamos a conversar.