sexta-feira, 15 de maio de 2015

E juntos inventaram uma nova amizade

Bebo um copo sozinha em homenagem a uma grande companhia. E brindo levantando o copo, embora apenas na minha imaginação, cheia de vontade de encontrar ao alto o outro copo que neste momento me faz falta.
Adele e Peixoto conheceram-se num dia banal de trabalho e desde então muitas peças se foram naturalmente encaixando, num puzzle sem contornos certos. E assim é que eles gostavam de estar, sem contornos, sem preconceitos, sem rodeios, sem subterfúgios, sem tabus, sem tretas...
Claramente numa amizade assim, em que se partilha tudo sem qualquer ciência é inevitável que a cumplicidade entre ambos se expanda. E assim aconteceu. Nenhum tinha segredos para o outro. 
Curioso que até para o companheiro temos algumas reservas, neste caso entre eles essas defesas caíram por terra, não encontraram raízes... As raízes nem sempre são boas... Às vezes num relacionamento crescem raízes venenosas, mas entre eles nada disso aconteceu. Eles não tinham um relacionamento amoroso. E isso era delicioso.
Adele era uma mulher bonita, usava uma melena castanha solta em cachos largos e redondos, era alta e magra. Usava vestidos de organza que se enrolavam nas suas pernas e deixavam transparecer os seus contornos femininos e quando caminhava vários olhares caminhavam com ela.
O seu percurso de vida e a influência dos seus progenitores transformaram-na num ser muito determinado e sem grandes medos. Aliás, mesmo puxando pela cabeça não conseguia lembrar-se dos medos que não tinha. Ela só queria viver todos os dias, todas as alegrias que pudesse. Como se tivesse ganho o totoloto das alegrias e por mais que vivesse nunca iria ter tempo para as gastar todas. Ainda por cima estava num ano bom, pois a própria vida oferecia-lhe muitos motivos para rir, o que ela agradecia, celebrava e acumulava. Mas claro que não podia sobreviver apenas desta dieta, também sentia outras coisas. Coisas que partilhava muito com o seu amigo e companheiro Peixoto.
Peixoto, por seu lado era também uma alma cheia de vontade de se agarrar àquilo que queria viver. Muito intenso e ao mesmo tempo tão admiravelmente tranquilo. Não se arrependia de nada do que fazia e atirava-se cheio de coragem do alto das suas pernas para o meio da arena, com uma auto-estima tão grande, que até a fera que o enfrentava pensava duas vezes antes de investir.
Um dia foram os dois dançar. Embriagados pela música, pelo calor de todos os corpos sem braços que os envolviam, pela penumbra que os guiava um para o outro, beijaram-se. Beijaram-se de boca aberta e olhos fechados. Beijaram-se com as mãos escondidas nas costas um do outro. Beijaram-se sem dizer palavras, sem respirar. Apenas as línguas se trocaram e os lábios disseram silenciosos o que a música deixou de tocar. Beijaram-se como uma primeira vez, mas sem medos ou nervosismos.
E enquanto eram empurrados pelos corpos sem braços, o calor tornava-se incontrolável e almareados pela vontade que crescia perderam a noção do espaço que depressa abandonaram, sedentos de viver aquele desejo com todos os braços que tinham e que naquele momento não chegavam. Desamarraram por uma noite todos os laços que os uniam àquela amizade e durante horas percorreram o desconhecido, esmagando-se mutuamente. Tentavam a todo o custo esconder todos os seus membros nos espaços nunca antes sentidos do corpo um do outro. Criaram naquele momento novas peças de um puzzle mais recente, cheio de contornos novos e compuseram-no, nus na vertical, encostados à janela exposta à indiscrição dos outros.
Também aqui descobriram uma cumplicidade até agora ignorada. No corpo um do outro foram ingratos para com aquela amizade que os unia... Ou assim pensaria quem não os conhecia, quem não os percebia. Na realidade, quem os invejaria caso percebesse...
No dia seguinte Peixoto quis vê-la. Dizer-lhe com os olhos que a sua alma queria vivê-la. Adele no entanto quis ficar sozinha, deixar-se absorver com honestidade pelo que estava a sentir. E sentiu no corpo um nervoso inquietante. Tentou perceber porquê. E percebeu o seguinte, aquela amizade estava acima do momento que segundo ela fora único e ao mesmo tempo irrepetível. Era isso que ela sentia. 
Uma coisa é fazermos amor com um desconhecido ou mal conhecido, outra muito diferente é fazer amor com alguém que adoramos, respeitamos e por quem temos uma enorme afeição e amizade. 
Peixoto porém, sentia de outra maneira. Na sua qualidade masculina aquele desejo não se saciava numa só vez e no outro dia ele apareceu e percebia-se que ao contrário dela, queria repetir. Ficou decepcionado, embora tenha percebido os motivos de Adele. 
Os contornos da amizade mantinham-se inabaláveis. E por isso mesmo Peixoto tinha o à vontade para lhe dizer que a desejava, que queria voltar a esconder-se nos cantos fora da amizade. Queria voltar a ser ingrato para com esta e ao mesmo tempo queria liberdade para gozar este outro sentimento. Peixoto situava-se no meio destas duas polaridades num equilibrio muito confortável. Já Adele ainda não tinha encontrado esse equilíbrio.
Assim notou-se algum constrangimento entre os dois e embora depressa se ultrapassasse com pequenos grandes esclarecimentos, aquele permanecia latente.
Adele, sempre directa disse-lhe que ele estava abatido e ele disse-lhe que não e insistiu em manifestar-lhe o seu desejo em esconder-se dentro dela. E perguntou-lhe do que tinha ela medo. E dentro da mesma sinceridade de sempre ela respondeu: - tenho medo de não me apaixonar...
Ele olhou para ela e riu muito, dizendo-lhe que era disso que ele gostava nela, aquela sinceridade crua e de confiança. Agora estamos a conversar - dizia ele a sorrir - agora estamos a conversar.