sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Ultima noite na montanha

Seis minutos depois de sair dos escritórios da "Corto Safari" realizo que nunca mais vou ver estas pessoas.
Há individuos que entram nas nossas vidas por seis dias para vivermos com eles momentos intensos, momentos inesquecíveis e irrepetíveis. Momentos que não vivemos com as pessoas da nossa família, nem com os amigos ou companheiros.
Viajar é isto mesmo uma busca de dias intensos e fortes, exóticos e perigosos que não existem no nosso quotidiano. E acabamos por partilhar essas passagens com pessoas que mal conhecemos e com as quais estamos apenas durante a aventura.
Ainda que consigamos trocar fotografias e mensagens pela internet, esta será uma amizade efêmera. No fundo, fica aonde termina a aventura... longe e distante...
A subida ao Kilimanjaro foi sem duvida absolutamente alguma a aventura mais difícil que já empreendi. Atrevo-me a adivinhar que não voltarei aquela montanha. Não que não tenha gostado, ao contrário, amei cada segundo e agora à distância consigo valorizar muito mais o que senti. Celebro ainda cada momento. Provavelmente daqui a um ano ou dois até mudo de ideias e volto. Quem sabe... O espirito de aventura dá-nos esta possibilidade, a de mudarmos de ideias...
Estávamos a 4600 m de altitude e isso trás efeitos no nosso corpo, principalmente quando a ascensão até aqui leva apenas quatro dias. Tentavamos a subida ao pico mais alto de África, o tecto do continente africano como li algures nos panfletos turísticos da Tanzania.
Depois de seis horas de caminhada, o calendário contava agora cinco dias de montanha e muitos quilometros percorridos. Eram 23h00m desse mesmo dia. Saímos após umas breves quatro horas de sono. Deram-nos um crepe com mel e chá, nos quais não toquei. Durante este curto descanso acordei várias vezes enjoada e quando nos serviram esta refeição ligeira não consegui senão beber água quente e fervida (que é a única água que podemos beber em África para além daquela que é engarrafada, para não ficarmos com os intestinos virados do avesso).
A noite estava fria, menos dez graus centígrados para ser mais exacta. Não fazia vento e o céu não podia estar mais estrelado. Pela experiência que já havia tido no Nepal, para além de levar cinco camadas de camisolas e três de calças, decidi não levar sticks para poder levar as mãos dentro dos bolsos, protegidas com luvas. Resultou. Estar abaixo do sinal menos no termómetro implica alguns cuidados e atenções para com as nossa extremidades. Há quem tenha perdido dedos e até mesmo a ponta do nariz por levar essas saliencias desprotegidas.
O caminho começa logo por ser duro por causa da inclinação acentuada. Seguimos muito, muito devagar. A falta de ar não nos permite seguir a passo normal. Houve alturas em que mais parecia que o meu coração ia parar definitivamente sem ter forças para explodir ou rebentar. Simplesmente parar... Puf...
Foram oito horas de subida, oito horas seguidas sem comer, sem ter vontade de urinar, quase sem poder falar. Contei todas as estrelas que existiam no céu e quando elas acabaram tive de inventar um novo universo para poder continuar a contar. Inventei sete universos ao todo. Não tenho memória de ter visto tantas estrelas e de ter investido tanto tempo para as contar.
A certa altura do percurso fiquei para trás. Os três companheiros que tentavam a ascenção comigo caminhavam mais depressa. Talvez não estivessem a contar estrelas ou a inventar universos. Assim, continuei apenas eu e um dos três guias, Lamsi do sorriso de sol (pelo menos era assim que eu via aquele sorriso cada vez que olhava para mim, luz e calor na noite fria).
Numa das nossas muitas paragens para eu ganhar fôlego, (eu porque ele respirava de uma forma incompreensívelmente diferente e só parava para me dar água a beber), reparei que também havia estrelas abaixo do céu. A limpidez do ar era tanta que víamos a mancha de luz de Moshuma a quilómetros de distância, cidade que atravessámos no dia seguinte... Curioso como nesse dia já não tinha estrelas. De longe pareceu-me muito mais próxima do céu. Talvez por isso os Seres que habitam o universo não venham cá, sentem-se mais próximos quando nos vêm ao longe.
Houve muitas alturas em que com todas as dificuldades, me senti no céu, principalmente quando o Lamsi do sorriso de sol me pegava na mão e me puxava para cima das pedras ou quando me deixava sentar com a cabeça apoiada no seu ventre. Por momentos sentia-me curada do cansaço. Como se ele fosse uma mãe ou um anjo.
Quando estávamos a mais de meio caminho deu-me a fome. Tirei uma bolacha da mochila e trinquei, porém não consegui comer. Senti a dureza do estômago que entretanto se havia alojado nas costas, um enjoo tremendo e quis vomitar a fome.
Daqui demorámos mais duas horas até ao topo. Neste tempo o meu corpo desmembrou-se mil vezes de si mesmo. Muitas vezes foi só pulmões que mais pareciam duas asas de borboleta enormes e abertas, presas ás minhas costas de boca aberta para apanhar mais ar. Outras vezes foi só coração, como se todo o meu sangue se tivesse precipitado para dentro deste músculo gigante transformando-o num novo planeta a arder. Uma vez foi só estômago, porque continuava a não conseguir vomitar a fome.
Por fim, já a ver o ponto de chegada sentei-me numa rocha para ver o nascer do sol. Foi quando me apercebi de uma montanha à mesma altura da minha cabeça, o Pico Mawenzi a Este, com 5349 metros (cuja fotografia e única da montanha, publico aqui, pois tal como eu a máquina estava sem fôlego e esta foi a imagem que a custo captou). Por um segundo pareceu-me que se estendesse a mão conseguiria tocar e subir-lhe para cima. Felizmente a sensação de vertigem que tive impediu-me de dar esse salto, pois se o fizesse caia num precipício.
Nunca tinha tido uma montanha à altura da minha cabeça, sem estar em cima dela. Senti a sua força como uma bola gigante de energia arremessada na minha direção. De repente fiquei envolta de uma pressão que me comprimiu por causa dessa energia e tive urgência em levantar-me para continuar a subir. 
O sol já tinha a sua forma de bola completa e emergia do fundo de um mar de bruma cinza arrosada. Curioso como pousava para cá da linha do horizonte e não em cima dela como é habitual. Esta imagem gravei-a na memória, a máquina fotográfica já não funcionou. Talvez o frio tenha "congelado" a bateria.
A 100m do topo da montanha o meu corpo está no limite da sua capacidade. Não fosse Lamsi do sorriso de sol e penso eu, não teria conseguido encontrar forças para continuar.
A falta de ar faz-nos sentir os pulmões e o coração mais pesados que os braços e que as pernas. Por momentos fui uma montanha!
É extraordinário como me senti espantada com a reserva inesgotável de coragem que encontrei em mim. É absolutamente gloriosa a sensação de superarmos os nossos limites. De conquistarmos não só o que nos parece impossível e também o nosso corpo.
Confesso que não duvidei nem por um minuto que conseguiria. Acredito muito na minha saúde mental e física e sabia que não me deixaria ficar a meio. Apesar de todas as dificuldades, dentro de mim existiu sempre uma espécie de tranquilidade que me trouxe um sossego abençoado e sentido.
Posso assegurar-vos que numa viagem como esta conquistamos muito de nós e aprendemos muitas lições. Ganhamos oceanos novos e fenómenos raros e momentâneos acontecem. A vida fica atenta a novos sinais e o nosso corpo ganha novas memórias. Uma grande lição que trago ou melhor, que relembro nesta aventura é precisamente a de que o nosso corpo é o meio de transporte para tudo o que fazemos, para todos os lugares que vamos, para todas as emoções que sentimos. É o corpo que nos permite viver todas as nossas aventuras. É também o corpo que nos une à natureza.
Corpo, mente e espírito. Precisamos dos três para subir a montanha e ela enriquece-nos os três...

2 comentários:

  1. Li cada palavra como se estivesse a sentir o esforço físico que passaste para viver esses momento eternos e irrepetíveis. Tenho um orgulho imenso em poder, de certa forma, acompanhar cada canto do mundo que vais visitando

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  2. Ser a montanha e não vencer a montanha. Gostei de sentir que a tua dor não foi maior que a tua essência. A partir de um certo momento, em que o esforço parece que nos derrota, tudo fica claro: rendemo-nos e nessa rendição fundimo-nos :) miss you

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