sexta-feira, 3 de julho de 2015

Olhar a Intimidade...

 foto by Laycos

Imbuída do espírito de um festival de terapias, música yoga e meditação, ainda num estado suspenso no tempo, espero no carro por um amigo a quem vou dar boleia de volta para a civilização. Depois de carregarmos tudo e enchermos a bagageira, ele decidiu tomar um banho. Um banho que o vai limpar da poeira. Poeira da terra seca que se entranha na pele e se agarra a todos os fios de cabelo num tentativa de subir mais alto e não assentar. 
Deste banho sai o pó e fica tudo aquilo que nos foi enchendo de tantas emoções. Fica a energia que fomos ganhando com todos os abraços, todas as trocas intensas de olhares, com todas as partilhas e conversas cheias de propósito. Esta energia que nos conecta a todos e nos faz sentir realmente ligados.
Este banho também não vai tirar a vibração de todas as músicas ouvidas e dançadas, puladas até à exaustão, corridas com os braços no ar, suadas, estendidas até ao infinito. Não tira do corpo a memória de todos os sorrisos, de todos os cheiros, da textura de mãos desconhecidas, do toque permitido, do calor consentido. 
E enquanto espero, observo. Dou por mim a vê-lo entrar na zona de duche aberto e a despir-se. Tirou todas as peças de roupa como se não lhe pertencessem, pousou-as num banco corrido de madeira, escolheu um lugar vazio e pressionou a torneira. A água caiu em jacto abundante sobre o seu corpo, molhando-o por completo, quase instantaneamente. Como num ritual decorado o liquido escorre exactamente para onde deve cair, libertando a pele do peso extra e que não faz falta. A brisa levava as gotas minúsculas que saltavam e voavam envolvendo-o de uma névoa livre e dispersa que dançava em ondas à sua volta. 
Há uma grande diferença entre olhar uma pessoa que conheces tomar banho e ver outra que não conheces de lado nenhum. Esta vês de uma forma rápida, de lado, enquanto segues o teu caminho... a outra sentes...
Eu estava parada e parei também o momento ficando assim, só a olhar, a contar todos os seus movimentos, aumentando os segundos para que todos os gestos fossem contemplados.
Depois de ter recebido a água, pegou no sabonete e passou-o em todos os cantos da sua pele. E chegou a todos os poros, a todos os órgãos que se abriam tolerantes à força dos seus gestos fortes e sem nexo. E se para mim a imagem decorria em camara lenta, a realidade é que ele usava gestos muito abruptos enquanto espalhava o sabão, cujo perfume eu nao sentia mas imaginava... Como se de repente estivéssemos em dimensões diferentes. A dele corria rápido e a minha retardava-se em lapsos de tempo demorados. 
Dei por mim a pensar que tomar banho é um momento muito intimo e mesmo não tendo vergonha da nudez, da minha ou da dele neste caso, optei sempre por tomar banho nos duches fechados, pois gosto de partilhar a minha intimidade apenas com quem quero e não com quem passa.
Por outro lado, embora só eu estivesse a sentir aquela intimidade com uma pessoa quase estranha, no meio de tantas outras mais estranhas ainda e que passavam indiferentes, fiquei feliz por ele ter decidido tomar o seu banho sem pudor, num ponto em que eu o pude ficar a observar. 
Eu estava ali a presenciar um momento muito particular e privado que embora não tivesse sido consentido, também não havia sido proibido. E por algum motivo eu optei por viver esse momento. Por alguma razão fiquei parada a olhar um quase estranho a tomar banho, atraída pela sua forma desavergonhada, apressada e inconsequente de se livrar do peso da poeira e deixar mais espaço para a vibração de todos os momentos intensos que havíamos vivido no festival.
E porque razão vos conto isto? Porque há muito tempo que não olhava realmente alguém tomar banho. Ver com a atenção que se tem quando se olha. E é muito bonito. Nós somos tão bonitos. 
Aquele instante foi quase como um passe de magia que criei, como se tivesse aparecido uma porta secreta e eu sem entrar espreitei pela fechadura sem ninguém se aperceber e fiquei a ver o que mais ninguém via.
E é nesta abundância de liberdade de estar, de observar o momento, de interpretar com o coração, com o corpo, com a imaginação, que me apeteceu gravar aquele momento, aqui e agora.
Que me perdoem os que não acreditam que a intimidade é feita de pequenos momentos, que a beleza que retiramos das experiências é criativa e que a liberdade de a sentirmos de forma única é um bálsamo para o nosso coração. 
Este banho foi feito no céu...

1 comentário:

  1. Grata pelas linhas inspiradoras...Pequenos momentos eternos e lentos nas continuas visões e revisões...a intimidade! Grata por recordares de uma forma tão bela. Grata pela partilha desta arte de como vês e como sentes!

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