domingo, 26 de janeiro de 2014

Só damos falta do que temos, quando o que temos nos falta. Nunca pensei dizê-lo por causa de uma otite.


Há dois dias rebentou-me o ouvido. No final do dia de trabalho, comecei a sentir imensas dores no ouvido direito. De repente algo ganhou vida e queria à força saltar cá para fora. Empurrava, espezinhava, fazia barulho, mas não conseguia sair e isso estava a deixar-me maluca.
Saí à corrida, mas por mais pressa que levasse não conseguia fugir à dor. Esta corria tanto quanto eu. Percebi que a levava comigo. Depressa constatei que teria de recorrer a um profissional para me ver livre dela.
Fui às urgências de Santa Maria. Passei na triagem e rapidamente percorri aquilo que me pareceu um quilometro e meio de corredores dentro do hospital. Apesar das dores, consegui decorar todas as indicações dos seguranças para chegar junto da médica. - Vire na primeira à esquerda, siga esse corredor até ao fundo e vire à direita. Passe a porta de vidro e nessa sala volte a perguntar à minha colega. E ela disse: - depois deste corredor vire à esquerda, siga até ao fim e depois vira à direita, volta a seguir até o fundo e depois vira à esquerda. Apanhe o elevador número 13, suba até ao quinto andar e aguarde.
Lá fui, a respirar aquele ar quente que me obrigou a ir despindo ao longo do caminho, imaginando quantos quilômetros por dia faz um enfermeiro naqueles corredores. Tentava ao mesmo tempo não me esquecer das indicações do último segurança. 
Quando cheguei esperei 5m. É verdade, foram apenas 5m. Nem sequer deu para terminar o capítulo do livro que estou a ler.
A médica era uma simpatia. Não me deixou muito tempo em suspense e diagnosticou-me de imediato uma otite. Disse-me para não me assustar se rebentasse e saísse sangue. Perguntou-me se era mergulhadora. Disse-lhe que tinha tirado e curso e mergulhado muito nos Açores. Ainda nos rimos, apesar das dores que tinha no ouvido, quando lhe disse que tinha voltado de lá por amor. Hoje já consigo rir disso.
Tentei enganá-la dizendo que era alérgica a tudo o que é medicamentos, mas ela era inteligente e apanhou-me na mentira. Receitou-me um antibiótico, um analgésico, gotas auriculares e um spray para o nariz. Durante a noite pari uma otite. 
Hoje, passadas 48h estou apenas a tomar o antibiótico. Sinto que é o único cujo prazo devo respeitar. Não sou nada de medicamentos. Mas é como diz uma grande amiga: - não te martirizes, estás a tratar do corpo, não da alma.
Nestes dois dias apercebo-me do que é viver sem ouvir bem. E repito sem ouvir bem. Ainda oiço qualquer coisa.
Andar sem ouvir é como se estivésse a viver no mesmo mundo, mas num quarto ao lado. Um quarto de vidro em que vejo tudo igual, mas em que sinto uma espécie de isolamento. E por vezes isso fez-me pairar.
Caminho e sinto a dureza do chão, o relevo das pedras e da calçada, mas não ouço os meus passos. Atravesso a estrada, mas não oiço os carros, só sinto a vibração da sua velocidade. O vento frio passa-me no pescoço e entende-se nos cabelos, mas não o oiço.
Hoje, dentro deste quarto de vidro, vi as nuvens pareceram-me icebergues gigantes. Era como se andasse debaixo de um oceano gélido e translúcido. Os icebergues a passar-me por cima, lentamente, como se estivessem a ser rebocados pela corrente.
E tudo porque não ouvia o vento que empurrava as nuvens. Não ouvia o murmúrio do vento nas folhas das árvores. E por isso não me virei quando passei por elas. 
Como disse em cima, sentia-me a pairar. Quase como se a gravidade também tivesse deixado de existir. 
Por outro lado, dentro do ouvido foi e ainda está a ser a balbúrdia total. Passei o dia a ouvir um latejar indolor, como se tivesse um pequeno martelo a marcar os segundos. (tenho de dizer indolor para não deixar a minha mãe em pânico). Ouvia a respiração a roçar-se, como se os pulmões estivessem ligados por uns tubos, directamente aos ouvidos. Ouvia também um eco estranho, um zumbido permanente de mil asas de mosquitos, completamente incansáveis, liquido a mover-se de cima para baixo e os batimentos do meu coração. Das 120.000 batidas que dá em média por dia, hoje devo ter ouvido umas 77.000. As outras 43.000 bateram quando estava distraída e houve mesmo alturas em que as ouvi deixar de bater. Agora estou a ouvi-las.
É incrível como uma pequena e leve surdez me fez sentir tudo isto. Mudou o meu quotidiano sensitivo e fez-me conhecer um outro corpo cheio de sons interiores. Como se os ouvidos se tivessem virado para dentro. A otite despertou-me os outros sentidos. 

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