sábado, 17 de outubro de 2015

Homenagem a algo que me transforma...

Quando entramos na sala entramos descalços. E aos poucos também nos vamos desnudando. Desnudando do trabalho, do que ainda ficou por fazer, da azáfama, da poluição sonora sempre a zumbir à nossa volta, do telemóvel, da raiva, das frustrações... do cansaço... E aos poucos começa. Começa a danza...
Danzar descalça. Viver desde o cumulo da liberdade até ao extremo de nos sentirmos encurralados nos nossos próprios medos... e é a danzar que lhes damos baile.
As vivências são todas aquelas que temos direito e também as que não temos. O nosso processo é de todos, pois também é no Outro que nos encontramos. As emoções rodopiam em espirais lentas e nesse giro centrado voamos e ascendemos até ao mais alto de nós.



Danzar descalça e sentir-me nua... nua de pele, de contornos, de preconceitos, de ideias, de membros, de julgamentos. Agarrar o Outro de olhos fechados. Agarrar o Outro de olhos nos olhos. Aqui não há diferença física, há respeito pelos órgãos femininos e masculinos. Sou e sinto-me sensual. Sou e sinto-me sensível. Tocar e ser tocada no mais fundo do meu Ser, numa Sexualidade sagrada e sem tabus.
Danzar descalça começando de Dentro para o todo, como se o todo fosse Eu. Ir de copo cheio, livre e sem limites e voltar cheia daquela vibração expansiva do universo divino. Sentir-me sublime. O meu espírito em exaltação, o meu corpo solto num abraço planetário e a minha mente lúcida e cheia de vontade. A Transcendência liberta-nos de fronteiras.
Danzar descalça com tudo. Com as mãos, com as pernas, com os dois pés desencontrados e encontrando-se, cabelos no ar com os caracóis a voar despenteados para trás. Sou árvore , Sou lua, Sou um oceano, sinto o vento a soprar dentro de mim. Percorro enérgica a polaridade emocional e com o corpo, a mente e a minha natureza orgânica vou... vou num segundo intemporal, ardendo em Vitalidade e transformação.
Danzar descalça desenhando as ideias no chão e no ar, com os dedos todos, com os tornozelos, com o nariz, com as orelhas e as coxas. Colorir o tecto com as lágrimas que me caiem do pensamento. Ouvir uma orquestra com mil músicos escondidos debaixo de guarda chuvas com o céu pintado no resguardo. Imaginar que saltamos das janelas a voar, como se a gravidade fosse apenas uma invenção da nossa Criatividade.
Danzar descalça no meio de uma tempestade de emoções, sem precisar de gabardina ou carapuça, sem me esconder ou proteger, porque o único risco que corro é escorregar nos braços do Outro. Aqui o meu corpo serve de palco aos meus sentimentos, pelos braços sai a alegria, pelo peito o amor, pelas mãos a amizade, pelo olhar a verdade. Num ímpeto contínuo percorro a sala descalça e lanço toda a minha Afectividade.
E assim a danzar descalços, depois do êxtase, do apaziguamento, depois de termos permitido que o corpo seja realmente um instrumento e a casa das nossas emoções, encerramos as odes numa roda lunar ...ou solar...
bem integrados.
 Claro que já perceberam que não estou a falar apenas de uma aula de biodanza. A aula é só uma faísca. Acontece que é uma faísca que acende a lareira... E a minha fica bem acesa depois de danzar :)

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Olhar a Intimidade...

 foto by Laycos

Imbuída do espírito de um festival de terapias, música yoga e meditação, ainda num estado suspenso no tempo, espero no carro por um amigo a quem vou dar boleia de volta para a civilização. Depois de carregarmos tudo e enchermos a bagageira, ele decidiu tomar um banho. Um banho que o vai limpar da poeira. Poeira da terra seca que se entranha na pele e se agarra a todos os fios de cabelo num tentativa de subir mais alto e não assentar. 
Deste banho sai o pó e fica tudo aquilo que nos foi enchendo de tantas emoções. Fica a energia que fomos ganhando com todos os abraços, todas as trocas intensas de olhares, com todas as partilhas e conversas cheias de propósito. Esta energia que nos conecta a todos e nos faz sentir realmente ligados.
Este banho também não vai tirar a vibração de todas as músicas ouvidas e dançadas, puladas até à exaustão, corridas com os braços no ar, suadas, estendidas até ao infinito. Não tira do corpo a memória de todos os sorrisos, de todos os cheiros, da textura de mãos desconhecidas, do toque permitido, do calor consentido. 
E enquanto espero, observo. Dou por mim a vê-lo entrar na zona de duche aberto e a despir-se. Tirou todas as peças de roupa como se não lhe pertencessem, pousou-as num banco corrido de madeira, escolheu um lugar vazio e pressionou a torneira. A água caiu em jacto abundante sobre o seu corpo, molhando-o por completo, quase instantaneamente. Como num ritual decorado o liquido escorre exactamente para onde deve cair, libertando a pele do peso extra e que não faz falta. A brisa levava as gotas minúsculas que saltavam e voavam envolvendo-o de uma névoa livre e dispersa que dançava em ondas à sua volta. 
Há uma grande diferença entre olhar uma pessoa que conheces tomar banho e ver outra que não conheces de lado nenhum. Esta vês de uma forma rápida, de lado, enquanto segues o teu caminho... a outra sentes...
Eu estava parada e parei também o momento ficando assim, só a olhar, a contar todos os seus movimentos, aumentando os segundos para que todos os gestos fossem contemplados.
Depois de ter recebido a água, pegou no sabonete e passou-o em todos os cantos da sua pele. E chegou a todos os poros, a todos os órgãos que se abriam tolerantes à força dos seus gestos fortes e sem nexo. E se para mim a imagem decorria em camara lenta, a realidade é que ele usava gestos muito abruptos enquanto espalhava o sabão, cujo perfume eu nao sentia mas imaginava... Como se de repente estivéssemos em dimensões diferentes. A dele corria rápido e a minha retardava-se em lapsos de tempo demorados. 
Dei por mim a pensar que tomar banho é um momento muito intimo e mesmo não tendo vergonha da nudez, da minha ou da dele neste caso, optei sempre por tomar banho nos duches fechados, pois gosto de partilhar a minha intimidade apenas com quem quero e não com quem passa.
Por outro lado, embora só eu estivesse a sentir aquela intimidade com uma pessoa quase estranha, no meio de tantas outras mais estranhas ainda e que passavam indiferentes, fiquei feliz por ele ter decidido tomar o seu banho sem pudor, num ponto em que eu o pude ficar a observar. 
Eu estava ali a presenciar um momento muito particular e privado que embora não tivesse sido consentido, também não havia sido proibido. E por algum motivo eu optei por viver esse momento. Por alguma razão fiquei parada a olhar um quase estranho a tomar banho, atraída pela sua forma desavergonhada, apressada e inconsequente de se livrar do peso da poeira e deixar mais espaço para a vibração de todos os momentos intensos que havíamos vivido no festival.
E porque razão vos conto isto? Porque há muito tempo que não olhava realmente alguém tomar banho. Ver com a atenção que se tem quando se olha. E é muito bonito. Nós somos tão bonitos. 
Aquele instante foi quase como um passe de magia que criei, como se tivesse aparecido uma porta secreta e eu sem entrar espreitei pela fechadura sem ninguém se aperceber e fiquei a ver o que mais ninguém via.
E é nesta abundância de liberdade de estar, de observar o momento, de interpretar com o coração, com o corpo, com a imaginação, que me apeteceu gravar aquele momento, aqui e agora.
Que me perdoem os que não acreditam que a intimidade é feita de pequenos momentos, que a beleza que retiramos das experiências é criativa e que a liberdade de a sentirmos de forma única é um bálsamo para o nosso coração. 
Este banho foi feito no céu...

sexta-feira, 15 de maio de 2015

E juntos inventaram uma nova amizade

Bebo um copo sozinha em homenagem a uma grande companhia. E brindo levantando o copo, embora apenas na minha imaginação, cheia de vontade de encontrar ao alto o outro copo que neste momento me faz falta.
Adele e Peixoto conheceram-se num dia banal de trabalho e desde então muitas peças se foram naturalmente encaixando, num puzzle sem contornos certos. E assim é que eles gostavam de estar, sem contornos, sem preconceitos, sem rodeios, sem subterfúgios, sem tabus, sem tretas...
Claramente numa amizade assim, em que se partilha tudo sem qualquer ciência é inevitável que a cumplicidade entre ambos se expanda. E assim aconteceu. Nenhum tinha segredos para o outro. 
Curioso que até para o companheiro temos algumas reservas, neste caso entre eles essas defesas caíram por terra, não encontraram raízes... As raízes nem sempre são boas... Às vezes num relacionamento crescem raízes venenosas, mas entre eles nada disso aconteceu. Eles não tinham um relacionamento amoroso. E isso era delicioso.
Adele era uma mulher bonita, usava uma melena castanha solta em cachos largos e redondos, era alta e magra. Usava vestidos de organza que se enrolavam nas suas pernas e deixavam transparecer os seus contornos femininos e quando caminhava vários olhares caminhavam com ela.
O seu percurso de vida e a influência dos seus progenitores transformaram-na num ser muito determinado e sem grandes medos. Aliás, mesmo puxando pela cabeça não conseguia lembrar-se dos medos que não tinha. Ela só queria viver todos os dias, todas as alegrias que pudesse. Como se tivesse ganho o totoloto das alegrias e por mais que vivesse nunca iria ter tempo para as gastar todas. Ainda por cima estava num ano bom, pois a própria vida oferecia-lhe muitos motivos para rir, o que ela agradecia, celebrava e acumulava. Mas claro que não podia sobreviver apenas desta dieta, também sentia outras coisas. Coisas que partilhava muito com o seu amigo e companheiro Peixoto.
Peixoto, por seu lado era também uma alma cheia de vontade de se agarrar àquilo que queria viver. Muito intenso e ao mesmo tempo tão admiravelmente tranquilo. Não se arrependia de nada do que fazia e atirava-se cheio de coragem do alto das suas pernas para o meio da arena, com uma auto-estima tão grande, que até a fera que o enfrentava pensava duas vezes antes de investir.
Um dia foram os dois dançar. Embriagados pela música, pelo calor de todos os corpos sem braços que os envolviam, pela penumbra que os guiava um para o outro, beijaram-se. Beijaram-se de boca aberta e olhos fechados. Beijaram-se com as mãos escondidas nas costas um do outro. Beijaram-se sem dizer palavras, sem respirar. Apenas as línguas se trocaram e os lábios disseram silenciosos o que a música deixou de tocar. Beijaram-se como uma primeira vez, mas sem medos ou nervosismos.
E enquanto eram empurrados pelos corpos sem braços, o calor tornava-se incontrolável e almareados pela vontade que crescia perderam a noção do espaço que depressa abandonaram, sedentos de viver aquele desejo com todos os braços que tinham e que naquele momento não chegavam. Desamarraram por uma noite todos os laços que os uniam àquela amizade e durante horas percorreram o desconhecido, esmagando-se mutuamente. Tentavam a todo o custo esconder todos os seus membros nos espaços nunca antes sentidos do corpo um do outro. Criaram naquele momento novas peças de um puzzle mais recente, cheio de contornos novos e compuseram-no, nus na vertical, encostados à janela exposta à indiscrição dos outros.
Também aqui descobriram uma cumplicidade até agora ignorada. No corpo um do outro foram ingratos para com aquela amizade que os unia... Ou assim pensaria quem não os conhecia, quem não os percebia. Na realidade, quem os invejaria caso percebesse...
No dia seguinte Peixoto quis vê-la. Dizer-lhe com os olhos que a sua alma queria vivê-la. Adele no entanto quis ficar sozinha, deixar-se absorver com honestidade pelo que estava a sentir. E sentiu no corpo um nervoso inquietante. Tentou perceber porquê. E percebeu o seguinte, aquela amizade estava acima do momento que segundo ela fora único e ao mesmo tempo irrepetível. Era isso que ela sentia. 
Uma coisa é fazermos amor com um desconhecido ou mal conhecido, outra muito diferente é fazer amor com alguém que adoramos, respeitamos e por quem temos uma enorme afeição e amizade. 
Peixoto porém, sentia de outra maneira. Na sua qualidade masculina aquele desejo não se saciava numa só vez e no outro dia ele apareceu e percebia-se que ao contrário dela, queria repetir. Ficou decepcionado, embora tenha percebido os motivos de Adele. 
Os contornos da amizade mantinham-se inabaláveis. E por isso mesmo Peixoto tinha o à vontade para lhe dizer que a desejava, que queria voltar a esconder-se nos cantos fora da amizade. Queria voltar a ser ingrato para com esta e ao mesmo tempo queria liberdade para gozar este outro sentimento. Peixoto situava-se no meio destas duas polaridades num equilibrio muito confortável. Já Adele ainda não tinha encontrado esse equilíbrio.
Assim notou-se algum constrangimento entre os dois e embora depressa se ultrapassasse com pequenos grandes esclarecimentos, aquele permanecia latente.
Adele, sempre directa disse-lhe que ele estava abatido e ele disse-lhe que não e insistiu em manifestar-lhe o seu desejo em esconder-se dentro dela. E perguntou-lhe do que tinha ela medo. E dentro da mesma sinceridade de sempre ela respondeu: - tenho medo de não me apaixonar...
Ele olhou para ela e riu muito, dizendo-lhe que era disso que ele gostava nela, aquela sinceridade crua e de confiança. Agora estamos a conversar - dizia ele a sorrir - agora estamos a conversar.
 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O salvador Salgado...

 Fui ver o documentário sobre a vida de Sebastião Salgado realizado pelo seu próprio filho Juliano Ribeiro Salgado e o famoso Wim Mertens que eu adoro, nomeado para os Óscares na categoria de melhor documentário de 2015. Na realidade não é só a vida de um grande fotógrafo que é retratada neste filme. O trabalho que este Senhor desenvolveu durante anos transforma-se agora na história da humanidade. Dá-se uma simbiose perfeita da vida do grande mestre da fotografia com o que tem sido o mundo nas últimas quatro décadas. Como se a vida de Salgado se misturasse com todos os acontecimentos que captou e nos afectaram nestes últimos quarenta anos, por serem também a história de cada um de nós. Todos nós vivemos de forma mais ou menos directa tudo o que foi revelado através da objectiva de Sebastião. E olhar agora todas as suas fotografias é comprovar que não somos diferentes daquelas pessoas que ele paralisou para a eternidade a preto e branco. Todas elas e nós sentimos dor, todas elas e nós choramos, todas elas e nós morremos, todas elas e nós imigramos em busca de uma vida melhor, todas elas vivem as mesmas emoções que todos nós. Durante a sessão muitas vezes me apeteceu gritar aos senhores da guerra: - A MORTE FICA-VOS TÃO BEM!!!
O tempo passou por todos e agora que Sebastião tornou esses momentos intemporais, temos a possibilidade de os viver e reviver. E todas as pessoas que sobrevivem hoje nestas fotografias merecem isso. É a homenagem que lhes podemos fazer. Termos acesso ao tempo dos Outros é um privilégio. 
Nunca virei a cara como fazia com as imagens que passavam no telejornal. Deixei as lágrimas virem, porque apesar de tristes elas também celebram a vida.
Neste filme pude aperceber-me que a obra deste homem tem uma repercussão que chega a todo o planeta, como o ar, como a chuva, como o vento... Felizmente... E a água que faltou a tanta gente, cai agora sobre as nossas cabeças. O calor de todas as bombas que rebentaram, a força de todas as balas fatais, a temperatura infernal de todos os fogos destruidores ruboriza-nos as faces. E do outro lado do pano, as cores de todo o esplendor da natureza saltam-nos dos olhos, pintalgando na nossa imaginação o preto e branco de Salgado.
Este Senhor com a ajuda da sua linda esposa Lélia fotografaram o mundo e trouxeram-nos toda a verdade. Sebastião Salgado não é apenas um Homem, é um Avatar que veio à terra com a missão de nos fazer ver e dar a saber das desgraças e da miséria humana.
Como adoraria massajar um homem assim. Sentir no seu corpo todos os mortos, todas as almas, todos os animais, todos os barcos naufragados, as famílias de pessoas, as famílias de gorilas, todas as mulheres, todos os filhos. Ler os olhares de espanto, de medo. Ouvir as vozes das crianças a brincar, ouvir os mortos, ouvir os pássaros. Aliviá-lo das lembranças mais tristes e desfazer a dor que ainda teima em vir incomodando o seu sono.


Salgado fotografa uma árvore com a mesma dignidade com que fotografa uma pessoa. Foi a fotografar a vida selvagem que aprendeu o que significa esperar. Esperar para celebrar a captura do momento perfeito. 
Uma baleia ensinou-lhe em alto mar que o peso das suas toneladas pode ser mais suave que uma pena quando nos movemos por amor. E essa baleia pousou para a sua objectiva, como se esse fosse exactamente o seu propósito em vir à superfície naquele preciso momento. E aqui nasceu mais uma fotografia de inquestionável beleza. 
Temos de sair detrás dos nossos escudos, de dentro das nossas conchas e saltar para o mundo. Honrar todos os dias um pouco do que este avatar e outros fizeram e fazem para nos alertar, tornando-nos seres humanos cada vez melhores. Salgado mostra-nos o pior e o melhor de nós e confessa inegavelmente perante o mundo que somos uma espécie terrível, capaz de infligir o maior dos sofrimentos a outro ser igual... e no entanto, ao mesmo tempo, somos a única esperança do nosso planeta.
Descobri algo inusitado neste filme, apercebi-me que apesar de ter fé em nós como humanos, no fundo não acreditava que o planeta fosse sobreviver por muitos anos, mesmos por todos aqueles que nunca irei contar. E hoje este homem fez-me acreditar que todos podemos sobreviver. Este homem deu-me esperança, porque se alguém que já viu o que ele testemunhou, acredita, então há esperança.
Há esperança.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Uma linguagem muito própria...

O coração tem uma linguagem própria e por vezes entendemo-lo outras vezes não. Há alturas que tomamos decisões por ignorância, por desejo, por influência, por razões que a própria razão desconhece, como dizia o poeta. E a nossa mente fica confusa com as consequências, porque nem sempre os resultados nos trazem felicidade. O curioso é que mesmo nestas alturas o nosso coração diz-nos sempre a verdade, mesmo que a verdade nos traga dor,   mesmo que não a consigamos entender. 
Por vezes ele (coração) quer sentir quando só queremos esquecer, insiste em ficar quando só nos queremos distanciar, pede para arriscar quando só queremos sobreviver, quer ir quando nem estar queremos.
Na linguagem do coração o desconhecido não é assustador é encorajador, o tempo não se esgota, expande, a saudade não é tristeza é calor, é alegria de termos dentro de nós a possibilidade de sentir o outro mesmo que à distância e o único apego é exclusivamente pela liberdade do nosso Ser e do Outro. 
O coração não conhece a linguagem do medo, pois este não existe quando há amor.
A linguagem do coração é própria porque não mente e está disponível sempre que a quisermos e soubermos ouvir sem ter de ir a lado nenhum, só temos de perguntar suavemente e escutar...
Ontem falou-me sem lhe ter perguntado nada. Quis dizer-me que tudo está certo, que é bom ter consciência do sentimento e activamente aceitar, seja ele qual for. Mesmo que não tenhas uma resposta entrega-te e aceita o que vier, a verdade virá se tiver de vir disse-me ele. Aguarda não aguardando. Vive. Vive sempre e celebra tudo o que puderes e te lembrares. Eu cá estarei a todo o tempo, mesmo que não me queiras perguntar nada. 
Grata pela tua Presença coraçãozinho, grata por te Sentir...

domingo, 8 de março de 2015

A Vila de Bhotetchaur e a minha vida na mota que me levou até lá



Por terras estrangeiras, onde na estrada não há regras, a não ser as que se descobrem no momento, aceitei a boleia de um amigo na parte de trás da sua mota. Posso dizer-vos desde já que qualquer passeio de BTT pela Serra da Arrábida é parecido com uma auto estrada comparado com esta viagem. Tudo aquilo que eu disser é pouco para vos transmitir a realidade.
Pheme parece uma flecha no meio de uma guerra aberta à velocidade. Acreditem que somos a flecha mais rápida. Pelo menos sinto que Pheme vai mais depressa que o tempo, a dizer pelas vezes que o meu coração ficou para trás.
Não fiz nenhum filme com o iphone porque qualquer semelhança com a realidade não seria coincidência e porque precisava desesperadamente dos meus dois braços para me agarrar, posso dizê-lo com toda a verdade à vida. E acrescento que se fosse um polvo, mesmo assim temia pela minha integridade física. 
O meu relato não tem a intenção de vos inibir de passar por uma experiência como esta, de todo, todos temos liberdade de escolher e vivenciar as nossas próprias experiências, venho apenas com muita amizade tentar esclarecer-vos o melhor que posso para que decidam com acesso a toda a informação possível.
Esta estrada não tem risco ao meio. Esta estrada não tem alcatrão. Esta estrada não tem bermas. Esta estrada não tem sinais de transito, nem semáforos. Esta estrada não é só para os carros e para as motas, é para muito mais cenas. Esta estrada mete medo.
As vezes em que as curvas eram ultrapassagens proibidas nem consigo contar pelos dedos. Até porque estes dedos ganharam uma forma estranha pela força que utilizava para me agarrar à mota. Aliás as mãos tinham agora o molde de um apara-lamas. Tive medo que não conseguir tirar o capacete pela dificuldade de descolar os dedos uns dos outros.
Esqueci-me muitas vezes de que lado da estrada se conduz e os condutores também pareciam não estar muito ilucidados, a dizer pelas vezes que não havendo o tal risco do meio, nos alinhavamos num frente a frente bastante renhido com os condutores que vinham em sentido contrário. Felizmente não tinha muito tempo para me preocupar porque tudo se resolvia muito depressa. Tenho de concluir, confesso que com certo alivio, que afinal estes condutores até são todos muito coordenados. Há que dar a mão à palmatória, nem tudo corria mal... Mas se a minha querida mãe soubesse que ia fazer uma viagem destas, penso que só me deixaria ir depois de antecipadamente cumprir uma promessa de ir a Fátima a pé e de joelhos, não menos que 133 vezes.
Além da falta de alcatrão, não faltavam os buracos negros deste universo sem estrelas, mas cheio de poeira cósmica, muito irritante para os olhos. Lembrei-me muitas vezes das minhas aulas de equitação por causa destes buracos que me faziam elevar uns interminaveis centímetros acima do banco do pendura. Embora nunca tenha feito saltos, estou apenas a imaginar que será algo semelhante.
Em relação ao corpo, vamos ver se vos consigo dizer o que é um corpo em cima de uma moto nas estradas do Nepal. É uma inconformidade pegada, sem ponta por onde se pegue. Descobri que os órgãos internos também podem ser massajados.
Passados dois dias ainda estou a descobrir novos músculos nos braços, qual aula de musculação.
Quando estava a pensar que não me lembrava de ter tomado nenhuma droga no momento em que aceitei fazer este passeio, algo extraordinário aconteceu, uma recta. Consegui finalmente relaxar e ver que também aqui existe paisagem e que fora do reboliço e poluição de Kathmandu havia campo verde e fresco e sem pó e com flores amarelas e plantações coordenadas de legumes. Não foi sequer preciso beliscar-me para acreditar que tudo era verdade por causa das dores no corpo. Mas tudo isto aconteceu depressa demais pois a recta tinha apenas 400m. Não quero parecer mal agradecida, sou grata por estes 30 segundos de descontração.
Felizmente a viagem terminou pouco depois, embora não antes de passar por outra experiência extraordinária, extraordinária no sentido de ser rara ou mesmo assombrosa, desculpem-me a frontalidade. 
Paramos para o Pheme cumprimentar uns amigos no caminho e tomar um Massala Tea. Estava apertadíssima para ir ao WC. Fiquei agradada quando a dona do espaço, também conhecida do Pheme, me ofereceu o quarto de banho da sua casa. Não me vou por aqui com grandes descrições, ajudo a vossa imaginação com duas fotos, uma da porta da instalação sanitária e outra da vista da mesma para o exterior (e já vão perceber porquê as duas fotos). Tive coragem de entrar, mas não de fechar a porta (foto1) pelo que me aliviei de forma mais exposta. E quando me tentava despachar por todos os motivos dos quais vos vou poupar, passados em mais um buraco negro, heis que alguém vem a descer as escadas (foto2). Fico duplamente horrorizada pois primeiro ia ser vista em pose para lá de fragilizada e intima por um desconhecido na sua própria casa e depois porque afinal quem desce das escadas do primeiro piso da casa é nada mais nada menos que a cabra que tinha dado o leite para o meu chá. Ou seja nesta casa os animais vivem no piso de cima e não debaixo da casa como era habitual no tempo dos nossos tetra avós. Isto de culturas diferentes, hábitos diferentes é bem verdade. 
Já na mesa a beber o chá preto com o leite daquela cabra (massala tea) o Pheme pedia-me desculpa, mas ia procurar um WC em condições que aquele ele não teve coragem de utilizar. Pensei, sou uma gaja preparada para a guerra!
Enfim meus queridos, respirem de alivio que 10m depois chegávamos ao destino da viagem e Deus quis compensar-me, pois a vista era também ela extraordinária, mas desta vez no sentido de ser arrebatadora e única. Um conselho, se quiserem ir até Bhotechaur, vão de carro e bebam líquidos só depois de chegarem.

Fotos da Vila porque todos nós merecemos






 Foto 1
foto 2


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O Tempo...



Quando estamos em viagem o mundo não pára. Continua a girar à volta dos planetas numa busca incessante e inesgotável pela luz do Sol. Continua a mostrar as estrelas à noite e quando amanhece fá-las desaparecer juntamente com a lua. O tempo é cíclico e começa e acaba todos os dias. Ou seja no lugar que abandonamos temporariamente tudo continua a acontecer. As pessoas continuam a aparecer à nossa procura e a conformar-se quando não nos encontram. Os emails chegam e são respondidos pelos outros que ficaram. Os horários cumprem-se na mesma. O fim do mês chega e a renda tem de se pagar. O cão come, o gato também. As plantas quase morrem de sede e na maioria das vezes, levam muito tempo a recuperar. Os legumes esquecidos no frigorífico apodrecem. A erva cresce. O meu sobrinho vai todos os dias para a escola. Todos os dias aprende palavras novas e faz as asneiras de sempre e às vezes tem umas novas que só vou saber quando a minha irmã me contar.
Há quem diga que o tempo e o espaço são construções da mente humana. E com tantas dimensões a acontecer em paralelo é bem capaz de ser verdade. Mas voltando às viagens, é curiosa a noção que temos do tempo quando estamos ausentes, como se ele mudasse de lugar connosco. Temos a sensação de que o agora acontece no aeroporto em que aterramos. Nas ruas das cidades desconhecidas que percorremos com o mapa nas  mãos. Na cor e na luz da paisagem que nos percorre o olhar, para lá da janela do comboio. Temos a sensação que o tempo passou a existir apenas nos locais para onde escolhemos ir pois perdemos o contacto com o espaço no qual estamos a costumados a estar. É-nos difícil imaginar que o tempo não é um espaço, que no fundo não existe e que por isso todos podemos imaginar um tempo de Agora em qualquer lugar e em qualquer altura. E quando regressamos é como se tivéssemos viajado numa máquina do tempo, porque o que se passou na nossa ausência já não volta e nunca o vamos viver. Ele segue sempre na mesma direção sem se relacionar com elementos externos, nós é que temos a pretensão de o aprisionar no espaço e nos lugares por onde andamos. Mas ele não se deixa enganar... continua a girar em ciclos e em todos os espaços ao mesmo tempo como se fosse Deus. A ver tudo e a fazer acontecer. E as horas passam aqui e lá no outro lado do mundo sempre sempre a fazer história.